Versão Web
Antes de eu entrar no assunto que eu deixei em aberto no último texto (a Monte Bravo querendo comprar a gente), queria só dar um update do produto, porque essa história é legal.
Estamos no começo de 2019 e o Real Valor era o melhor app de acompanhamento de investimentos.
Nesse momento, a gente contava com a versão Android e iOS.
Mas ainda não tinha uma versão para desktop.
O pessoal da Monte Bravo sempre falou que era importantíssimo porque os clientes deles usavam mais o site da XP do que o app.
A gente pensava em fazer uma versão web há muito tempo, mas nunca botamos a ideia em prática.
A ideia era boa, mas a gente nunca priorizou.
Até receber um email 100% genial.
Como você sabe, eu tinha uma relação muito próxima com os usuários do Real Valor. Muitos tinham meu WhatsApp, muitos me seguem no Instagram (pessoal) até hoje.
Essa relação próxima rendia frutos inimagináveis.
Exemplo de interação que eu tinha com usuários desconhecidos
Um desses frutos foi esse email. (Infelizmente não achei print dele)
O usuário disse algo nessa linha:
“Eu costumo dar uma olhada nos investimentos no trabalho, mas tenho que fazer escondido, porque se pego o celular fica evidente para o meu chefe que eu não estou trabalhando. Se vocês tivessem uma versão para desktop, eu poderia usar e o meu chefe nunca iria suspeitar que eu não estava trabalhando.”
Você entendeu o que aconteceu aqui?
O cara me pediu uma versão web para ele usar o Real Valor sem que o chefe achasse que ele não estivesse trabalhando.
Ele teve a coragem de mandar um email falando isso.
Para uma pessoa ter a coragem de enviar um email desses, a versão web tem que ser MUITO importante para ele.
Esse email foi a gota d’água.
A gente faria uma versão web.
Dito isso, vamos ao assunto que mais interessa nesse momento.
Monte bravo quer comprar a gente. E agora?
Se você se lembra, eu finalizei o texto passado falando que eu e o Gabriel saímos de uma reunião com os cabeças da Monte Bravo com a percepção de que eles estavam querendo nos comprar.
Falamos com um dos fundadores da ACE sobre isso para entender o que fazer a partir de então.
Ele explicou alguns detalhes que são comuns em exits (vendas de empresa).
Cash out: o valor financeiro que você coloca no bolso imediatamente. Earn out: valor atrelado a metas. Ao bater as metas, você recebe essa quantia.
O valor de uma venda é a soma do earnout + cash out.
Vamos a um exemplo.
Se o Real Valor vale 10 milhões de reais, o meu objetivo como founder é fazer com que o máximo possível seja cash out e o mínimo earnout. Digamos 80% de cash out e 20% de earnout.
O comprador, do outro lado quer o oposto. Ele quer minimizar o cash out (para gastar menos dinheiro) e maximizar o earnout (para só gastar dinheiro se a compra se mostrar boa).
O cash out é certeza. O earnout é duvidoso.
Por mais que a equipe tenha confiança de que é possível bater a meta, as vezes fatores externos são capazes de destruir o earnout, como a crise de 2008, a crise brasileira de 2015, a pandemia e por aí vai.
Quem fez deals antes desses momentos certamente teve mais dificuldade do que o esperado para atingir o earnout.
Nessa época, eu e Gabriel éramos majoritários, a ACE tinha 10% e o Thiago tinha um percentual também.
O valor da venda do Real Valor seria dividido proporcionalmente entre todos.
Talvez a parte mais difícil de uma venda dessas é chegar a um preço justo.
Quanto valia o Real Valor naquele momento? Os usuários amavam, mas a gente não fazia receita direito.
Depoimento de usuário que amava o Real Valor.
O valor da empresa estava no potencial de crescimento e de receitas futuras.
Isso torna o ato de precificar esse ativo beeeeeem complexo.
Depois de ter algumas aulas de como funcionavam deals desse tipo, traçamos um plano junto com a ACE.
Chegamos à conclusão de que o Real Valor valia 7 milhões de reais naquele momento. A gente estava disposto a vender para a Monte por um valor próximo desse número.
A ideia era falar esse valor e depois discutir como seriam as proporções de cash out e earnout.
Nós e a ACE tínhamos bastante incentivo de ter o máximo de cash out e a Monte, o mínimo
Aperte os cintos e mantenha mãos e pés dentro do veículo a todo momento
Lembra da montanha russa de emoções que eu sempre falo?
A gente estava se aproximando do pico mais alto da história do Real Valor
Empreender é uma montanha russa com picos e vales que aumentam em amplitude
Desde o momento que a Monte insinuou que queria comprar a gente, eu entrei naquele estado de espírito de achar que eu sou o dono do mundo.
“Porra, fiz um negócio do 0, sem saber programar, sem conhecer o mercado.”
“2 anos depois, fui investido pela ACE e um dos maiores escritórios da XP quer me comprar?”
E ainda tinha a cereja do bolo: a gente vale 7 milhões.
Porra.
Eu ia receber uns 3 milhões de reais. Puta q pariu. Que foda!!! Vou ficar rico.
Pois bem…
Imagino que você saiba que em montanhas russas, o pico vem logo antes de uma queda abrupta né?
A minha vida como empreendedor sempre foi assim.
Entramos na sala para negociar com a Monte Bravo.
Eles nunca falaram abertamente que queriam comprar a gente, mas fizeram várias e várias insinuações.
“Vamos fazer algo juntos.”
“Se a gente se juntar, a gente vai ser gigante.”
“Por que vocês não vêm trabalhar com a gente? Vocês têm que estar aqui”
Naquela reunião, decidimos seguir o nosso plano e ser um pouco mais diretos ao ponto.
Sentamos e falamos basicamente o seguinte:
“Vocês querem que a gente se junte? O preço é 7 milhões. Bora?”
(Não foi exatamente assim, mas você entendeu…)
O clima ficou bem esquisito imediatamente.
Não era aquilo que a Monte estava esperando.
Até hoje eu não sei dizer se eles imaginavam só contratar a gente e pagar um bom salário ou se pensavam que o valuation era muito menor.
Só sei que aquilo não era o que eles estavam esperando.
Eles falaram que aquele preço não fazia o menor sentido, que não tinha como tirar isso do caixa.
Só que a gente estava irredutível quanto ao preço.
A gente até poderia negociar um cash out e earnout, mas o preço era aquele.
Mas também deixamos claro que a gente queria uma cash out forte. Que a gente estava nessa jornada há um tempo, fazendo algo que tem valor pra caceta, mas que se fosse pra vender, a gente precisaria de alguma liquidez. (discurso que a gente tinha combinado anteriormente).
O clima permaneceu esquisito.
Os cabeças da Monte, como sempre, foram muito educados, mas declinaram a ideia.
Eles saíram da mesa”, como se diz no mundo de negociação. Não fizeram nem uma contraproposta
A ideia de vender pra Monte Bravo foi pro caralho.
Lembra que eu falei da montanha russa? A gente estava no pico.
Era a hora da queda.
A parceria com a Monte Bravo até continuou, mas o clima nunca mais foi o mesmo.
E agora?
O Real Valor ainda patinava para caceta na questão de monetização. A parceria com a Monte, que lá atrás tinha sido uma grande esperança de dias melhores não se mostrava ser tão boa assim: o dinheiro simplesmente não entrava.
Para se ter ideia, estamos falando de coisa da ordem de mil reais de receita.
Nessa época, a gente queimava uns 6-7k por mês e ainda contávamos com servidores gratuitos devido aos 100k USD de créditos google.
Não lembro ao certo quanto a gente consumia de créditos por mês, mas chutaria algo na linha de 3-5k.
Ou seja, a gente continuava deficitário buscando receita.
Só que o moral tinha ido pro cacete.
A venda pra Monte Bravo ia ser animal.
A gente ia se aliar a gigantes do mercado, aprender pra caramba, fazer o app crescer lá dentro fazendo dinheiro e ainda botar uns milhões no bolso.
A decepção de sair dessa fantasia e aterrissar na realidade deficitária foi foda.
Só que estamos falando de startup, meu amigo. E não há nada que seja tão ruim que não possa piorar.
Desmóide filho da puta
Se prepara que o papo vai ficar meio bad vibes.
Na minha infância, eu tive um tumor no pé esquerdo. Raro pra caceta. Se chama Tumor Desmóide. É benigno (não tem metástase), mas é extremamente agressivo: cresce rápido e tende a voltar.
Fiz cirurgia para retirar, mas ele acabou voltando.
Tive que fazer outra. Dessa vez, mais agressiva: contou com enxerto de um tendão da perna esquerda e pele do braço direito.
Passou um tempo e…
O tumor recidivou.
A terceira operação foi beeeeeem mais complexa. Contou com enxerto de músculo da coxa, pele da coxa, veias, etc. Foram colocados pinos, parafuso e ancoras (!?) no meu pé.
Ela foi feita em duas etapas. Na primeira, o tumor foi retirado e realizou-se uma bateria de exames para ver se não tinha ficado nenhuma célula.
Ao constatar o sucesso, voltei à sala de cirurgia para fechar e costurar tudo de volta.
Isso foi entre 2005 e 2008.
Perdi muito do movimento do pé esquerdo. Me afastei de vários esportes que gostava porque não conseguia mais jogar. Basicamente minha vida foi moldada ao redor das limitações que eu passei a ter por isso.
Desde a última operação (2008), faço exames de rotina para ver se está tudo bem.
Passei muito tempo contando a história do Real Valor aqui, mas omiti um problema pessoal que surgiu lá no começo de 2018: o meu pé esquerdo andava doendo. Uma dor estranha.
Agora a gente estava em 2019 e a dor era bem forte. Ao me levantar, tinha dificuldade de dar os primeiros passos.
Quando fiz o exame de rotina veio a bomba.
O filho da puta do tumor Desmóide tinha voltado.
Mas de onde!? Lá em 2008 ele tinha sido tirado. E agora, 11 anos depois tinha voltado?
É… é a vida. Fazer o que?
A cabeça que já não estava muito boa depois do episódio da Monte Bravo foi para o caralho.
O meu pé tinha tanto enxerto que eu sabia que se operasse de novo para tirar o tumor, seria amputação do pé.
E a ideia de perder o pé não é inexplicável.
O meu lado profissional estava ruim visto que a gente estava queimando dinheiro sem expectativa de virar lucrativo e tinha acabado de perder uma oportunidade de ser comprado.
O meu lado pessoal estava pior ainda: eu possível/provavelmente ia ter que amputar o pé.
Eu não sei dizer se o que eu tive nas próximas semanas foi depressão, mas eu acho que foi.
Eu simplesmente não queria mais sair da cama. Além do psicológico ter ido pro caralho, a dor de andar já tinha virado insuportável também.
Mas e como fica o trabalho?
Falei com o Gabriel que ficaria 2 semanas sem ir trabalhar. Problemas pessoais.
Obvio que era melhor eu me abrir e contar tudo. Mas naquela época, eu não queria saber de mais nada.
Eu só saia da cama para jogar CS no computador do meu quarto.
Era uma fuga.
Eram umas horinhas do dia que eu conseguia não pensar em nada.
Mas assim que saia do jogo, todo o peso da realidade voltava e aquilo estava absolutamente insustentável.
Durante essas duas semanas, o Gabriel tentava entender o que estava acontecendo enquanto me dava um tempo que eu tinha pedido.
Resgatei uma conversa dessa época. Ele querendo entender e eu só querendo ficar na minha.
O Real Valor começou a ser o “de menos” na minha vida.
“Foda-se essa empresa porra… eu vou perder o pé…”
Marquei de ir conversar com o Gabriel numa quinta feira para abrir o jogo.
Real Valor vai acabar?
Apesar de estar com dificuldade de andar, sai de casa e fui ao encontro do Gabriel para o almoço.
Fomos num restaurante chamado Stambul na divisa entre Ipanema e Copacabana.
A conversa foi em uma dessas mesinhas
Antes de eu me abrir, o Gabriel começou a falar que estava pensando em sair do Real Valor.
Ele trouxe à tona que aquela vida era muito estressante e que sempre dava errado. A gente só se ferrava e nas ultimas semanas, com a minha ausência ele começou a pensar nisso pra caceta.
Essa conversa foi difícil porque ao longo dos 2 anos de Real Valor até aquele momento, houveram dias em que eu queria desistir ou que ele queria desistir.
Mas sempre que um estava na bad, o outro fazia de tudo para animar. E assim o Real Valor foi indo.
Quando um desanimava, o outro animava. Quando um desanimava, o outro animava. Quando um desanimava, o outro animava.
Agora, a gente estava numa situação inédita.
O Gabriel queria parar e eu também.
Quando ele falou aquilo tudo, eu percebi que o Real Valor estava prestes a acabar.
Decidi me abrir 100% com ele.
“Cara, o tumor voltou… eu ando com uma dor do caralho e eu simplesmente não consigo nem pensar mais no Real Valor”.
Silêncio.
Fudeu....
Só que não… não fudeu.
Eu e o Gabriel somos “do contra”.
Assim que ficou claro que os dois queriam sair, a gente começou a “ser do contra”.
“Não porra… a gente não pode desistir assim…”
Decidimos então, traçar um plano final. A última tentativa.
The last dance.
Eu poderia até dar uma ideia do que ser esse last dance… mas ai eu não teria o suspense para você esperar uma semana para ler a próxima parte né?
Obrigado por ler mais esse post e te espero na quarta que vem para falar da last dance do Real Valor.
PS: Escrevi esse texto ao som da soundtrack do Dune 2, o que tornou o ato de escrever absolutamente É P I C O. Obrigado, @lucasbitt , pela indicação.
PS2: Venho adiando a fatídica cirurgia do pé, porque o meu oncologista descobriu um estudo de um médico alemão que conseguiu regredir os tumores desmóides de alguns pacientes usando um anti-inflamatório específico. Desde então, eu faço esse tratamento e até agora os resultados foram bons: o tumor deu uma regredida boa e eu consigo viver a vida sem sentir (muitas) dores.
PS3: Se inscreve aqui no Off the Grid.
Favor seguir o PS3.